domingo, 5 de outubro de 2008

APOLOGIA IMPROVÁVEL

Era uma vez … uns sábios que governavam um belo País. Nesse belo País, houve uns tempos em que, com o correr dos dias, começaram a surgir graves problemas com a gestão do seu território, com o crescimento urbano desregrado e os usos dos solos de modo desequilibrado e insustentável. Mas eis que aqueles sábios governantes se lembraram de criarem mecanismos legais que disciplinassem a ocupação do espaço. Inventaram então uns regulamentos, aos quais atribuíram os nomes soft de PDM, PROT, PMOT, POOC … e REN * e RAN ** e …, em teoria, cumprindo com o determinado, tudo permaneceria muito bem arrumadinho e ficariam bem definidos os locais onde se poderia construir, o que construir, como construir, quando construir, quanto se construía, quem construía, …

Entretanto, nesse belo País já tinham sido instituídas umas administrações municipais às quais chamaram de Câmaras que, em teoria, geriam o território de acordo com as diversas realidades locais ou regionais, privilegiando os regimes de governação tão próximos quanto possível das populações. E os tempos foram evoluindo e os dias correndo, até que começaram a surgir dificuldades de cariz orçamental, pois havia necessidade de custear aquelas instituições e os recursos eram parcos. Mas eis que os sábios governantes criaram uns quadros normativos que garantiam o financiamento autárquico através dos impostos provenientes do sector da construção, promovendo a construção, estimulando a construção, fomentando a construção, …

E os dias foram correndo e os anos passando e outras evidências surgindo e, nesse belo País, os solos com aptidão agrícola e os recursos naturais salvaguardados que, até então, tinham controlado a expansão urbana desmedida, foram sendo abandonados, maltratados, agredidos, esquecidos, desvalorizados e … em simultâneo, as áreas que estavam “condenadas à gula imobiliária”, foram sendo ocupadas por urbanizações avulsas incoerentes, empurrando os jovens em início de vida activa para autênticos dormitórios e protegendo os endinheirados em guetos elitistas à boa maneira decadente latino-americana …

Enfim, nesse belo País, a constante cedência aos interessados na pérfida especulação imobiliária foi tal, que até as próprias autarquias, reféns dos dinheiros do betão, deixaram de ter meios económicos para adquirirem os (hiper)valorizados terrenos onde pudessem erigir os investimentos públicos de que foram necessitando (serviços, equipamentos colectivos, infra-estruturas de apoio ao desenvolvimento social, cultural e económico, unidades de saúde, centros escolares, …).

MAS EIS QUE OS SEUS SÁBIOS GOVERNANTES DESCOBREM O “OVO DE COLOMBO”: – AS SUSPENSÕES PARCIAIS DOS PLANOS DIRECTORES MUNICIPAIS (PDM).

Pois é, os visionários desse belo País tiveram a ímpar capacidade de perceber que os terrenos da REN e da RAN, por via da sua classificação constituir um obstáculo à construção desenfreada, além de terem ficado imunes aos referidos fenómenos especulativos, ainda acabaram (ultra)desvalorizados, … ficaram baratinhos, … umas pechinchas, … enfim, os seus proprietários, com as expectativas em baixa, quase que os davam. E como é que se explorava esse filão de ouro? Simples … os sábios reuniam-se, sem grandes fundamentações *** declaravam o interesse público municipal e, suspendendo os instrumentos legais em vigor, alteravam a seu bel-prazer e para os propósitos que bem entendessem o regime de classificação dos solos até então preservados. E valia bem a pena, pois assim podiam construir-nos uns majestosos estádios (até os Césares fizeram isso na Antiguidade Romana e já então o povo se extasiava com essas prendas) e mais umas estradas novas e uns belos resorts de luxo e mais uns grandes quartéis e mais umas lindas urbanizações … muito desenvolvimento … muito desenvolvimento …

…/…

Enquanto escrevia este texto, não sei bem porquê, deu-me cá uma daquelas vontades de espreitar na "Larousse" o significado do termo ÉTICA … em teoria.

E também me veio à memória um ex-vereador do urbanismo de uma das maiores Câmaras Municipais daquele belo País e as palavras que proferiu enquanto purgava algumas das suas angústias:

É este o estado a que chegamos. Mas se o diagnóstico está feito, porque não se encontraram já soluções? Porque não se alterou já todo o modelo, prevenindo a corrupção? Por duas ordens de razões. Umas de teor corporativo. Está muito bem instalada uma oligarquia que é composta por três grupos muito bem identificados, que são os promotores imobiliários, arquitectos da «esquerda caviar» e grandes gabinetes de advogados, que ajudam a formatar todo este edifício e a branquear toda a manipulação urbanística. Por outro lado, há ainda uma causa bem mais grave e profunda: o financiamento da vida partidária. Muitas vezes, aqueles que são os gestores públicos estão ao serviço de lógicas partidárias que, por sua vez, se submetem a estratégias de negócios. Assim, muitos dos que fazem da vida partidária a sua profissão, quando têm acesso ao aparelho de Estado na administração local ou central, acabam por favorecer quem sempre os financiou. É até uma questão de gratidão…”

(Paulo Morais Professor universitário - Artigo de opinião publicado na revisão VISÃO, Nº 733, de 22 de Março de 2007)

* A Reserva Ecológica Nacional, designada por REN, constitui uma estrutura biofísica básica e diversificada que, através do condicionamento à utilização de áreas com características ecológicas específicas, garante a protecção de ecossistemas e a permanência e intensificação dos processos biológicos indispensáveis ao enquadramento equilibrado das actividades humanas. (Decreto-Lei n.º 93/90 de 19 de Março)


** O diploma que estabelece o regime jurídico da Reserva Agrícola Nacional (RAN) visa defender e proteger as áreas de maior aptidão agrícola e garantir a sua afectação à agricultura, de forma a contribuir para o pleno desenvolvimento da agricultura portuguesa e para o correcto ordenamento do território. (Decreto-Lei n.º 196/89 de 14 de Junho)

*** Vendo bem, que mal fará umas pequenas adulterações da REN e da RAN? Afinal só têm por objectivo garantir-nos a sobrevivência, conservar-nos os recursos hídricos de onde obtemos água para beber, salvaguardar-nos os solos férteis para termos que comer, proteger os locais onde habitamos evitando os fenómenos catastróficos como as cheias, as deslocações maciças de terras ou o avanço do mar.