Confirmação da
ocorrência de uma nova espécie da ordem dos PROCELLARIIFORMES
Família Procellariidae
Quando
um observador de aves se propõe a organizar listas das espécies que vai
identificando, quer seja ao nível global, num determinado país, numa região ou
ainda, como no meu caso pessoal, numa simples parcela do território nacional (a
quadrícula UTM NF 19), pode, nalguns casos, confrontar-se com várias dúvidas e
hesitações relacionadas com os critérios que deve adotar para considerar como
efetiva a observação de uma
determinada ave na natureza e, assim, poder “legitimamente” inscrevê-la no seu
inventário. Além disto, e para este mesmo efeito, também será importante tentar
clarificar em que circunstâncias podemos aceitar como “autêntica” uma ocorrência na área que estamos a
estudar.
Uma das questões mais
frequentes, e que no estuário do Cávado se prende sobretudo com a observação de
alguns anatídeos (patos, gansos e afins), é a atribuição, ou não, do estatuto
de aves genuinamente selvagens. Nesta matéria, tal como o Comité Português de
Raridades (CPR), distribuo as espécies na minha lista segundo as categorias classificativas aconselhadas
pela AERC - Association of European
Rarities Committees (ver a definição na Lista
Sistemática das Aves de Portugal Continental nas pág. 3 e 4).
Há
perguntas, porém, que nem sempre encontram resposta em critérios definidos
pelas autoridades científicas e gostaria de, entre outras, destacar aqui cinco.
Posso considerar como “observada”:
-
uma ave que estou a avistar, não a reconheço, mas é identificada naquele mesmo
momento por outro observador que me acompanha?
-
uma ave avistada no campo, não identificada in
loco, mas que reconhecerei posteriormente através de análise ao registo
fotográfico então obtido?
-
uma ave avistada no campo, que não reconheço in loco nem a posteriori através
do registo fotográfico então obtido, mas que acabará identificada recorrendo à
opinião ou convicção de terceiros a quem exibi as mesmas imagens?
-
uma ave não avistada mas detetada pelas suas vocalizações inconfundíveis?
-
uma ave encontrada já morta?
Relativamente
às quatro primeiras questões, não me restam grandes dúvidas para resolver. O
que deveras me
interessa é poder atestar ou garantir com
toda a segurança a ocorrência de uma
ou mais aves de uma determinada espécie na minha área em estudo, quer seja
através de fotografias perentórias, da minha convicção pessoal baseada na
memória visual ou auditiva, ou ainda da confiança que deposito em quem, melhor
do que eu, consegue de modo alicerçado identificar-me um espécime que eu
(também) vi e/ou ouvi. Como exemplo do primeiro caso, posso apresentar a inscrição
na minha lista das CAGARRAS (Calonectris diomedea) e das TORDAS-MERGULHEIRAS
(Alca torda) que observei em
fevereiro de 2008 num dia RAM (Censos de Aves Marinhas). Aqueles pontos brancos
e pretos ao largo em voo reto junto à superfície da água do mar passar-me-iam
despercebidos no telescópio sem o auxílio dos observadores que ao meu lado
reconheceram as espécies (apesar de em certos casos apenas ter sido possível
identificar algumas daquelas aves simplesmente como alcídeos). Já o método que
usei em outubro de 2010 para identificar pela primeira vez no estuário do
Cávado as GAIVINAS-PRETAS (Chlidonias
niger) serve de resposta à segunda questão. Só nas fotos descarregadas no
computador é que me foi possível perceber que entre as muitas andorinhas-do-mar
(família Sternidae) que naqueles dias
irrompiam rio acima, algumas apresentavam a mancha escura nos “ombros”
exclusiva daquela espécie. No terceiro ponto encaixa bem a história da TARAMBOLA-DOURADA-AMERICANA
(Pluvialis dominica) que fotografei
nesta zona húmida em setembro de 2010. Então publiquei aqui
uma das imagens obtidas e associei-a a uma congénere mais comum entre nós,
porém aquela identificação foi-me corrigida mais de um ano depois, mas em boa
hora, por Rafael Matias e ainda por outros dois membros do CPR depois de terem
analisado a foto apresentada neste blogue. Exemplos semelhantes são os de
espécies como o MOLEIRO-PEQUENO (Stercorarius
parasiticus) ou a GAIVOTA-DE-AUDOUIN (Larus
audouinii) que passaram pela foz do Cávado em outubro de 2011 e em maio de
2012, respetivamente, e cuja identificação apenas foi confirmada depois de ter
submetido os registos fotográficos à apreciação dos membros do Fórum Aves. Para
a situação seguinte, ou seja, as vocalizações ou os cantos, devo adiantar que
nenhuma espécie está inscrita no meu inventário exclusivamente com base neste
aspeto, mas não raras vezes arrolo nas minhas listas diárias ou mensais aves
como o CUCO-CINZENTO (Cuculus canorus),
a CORUJA-DO-MATO (Strix aluco), o MOCHO-GALEGO
(Athene noctua) ou o ROUXINOL-BRAVO (Cettia cetti), entre outras, sem que as
tenha visto. Ainda assim, depois de as ouvir, não tenho dúvidas de que tenham
estado cá e, por tal, “mereçam” o lugar nas ditas listas.
A
última questão apresentada é, julgo, a que maior controvérsia poderá suscitar,
sobretudo quando nos referimos a um inventário numa área tão limitada como uma
quadrícula UTM (10 X 10 Km ).
Numa mera reflexão sobre este tema poderão levantar-se várias outras
interrogações.
Com que autenticidade posso considerar
que num local “ocorreu” uma espécie:
-
sabendo que a deslocação da(s) ave(s) até ali dependeu em parte ou
completamente da ação humana?
-
quando a ave que a representa se encontrava em avançado estado de debilidade ou
incapaz de resistir e se deixou arrastar até ali por fatores ambientais
adversos (por exemplo ventos extremos ou correntes marítimas muito agitadas)?
-
quando a rota da ave que a representa foi desviada por um acidente com origem
antrópica (por exemplo um derrame de crude)?
-
quando já só encontramos a carcaça da ave, desconhecendo quais das
circunstâncias anteriores, ou outras, estiveram na origem do seu arrojamento
até ali (por exemplo na linha da maré ou na margem de um curso de água) ou da
sua morte, seja por causas naturais, acidente ou abate (por exemplo numa
floresta, na beira de uma estrada ou numa coutada)?
Mais
uma vez, a primeira pergunta ficou resolvida com a atribuição das já referidas
categorias classificativas. Um dos exemplos mais atuais é a presença na
marginal de Fão desde dezembro de 2011 do GANSO-CHINÊS (Anser cygnoides). Independentemente de ter sido introduzido aqui ou
de ter adquirido a liberdade ao fugir do lago de um jardim privado ou de um
parque urbano próximo ou de outra região do país, não restam quaisquer
incertezas quanto à impossibilidade daquela ave não nativa se ter deslocado
desde a sua área de distribuição original até ao nosso território pelos
próprios meios. Assim, e enquanto não estabelecerem populações reprodutoras
viáveis, estas aves não são incluídas na
Lista das Aves de Portugal, sendo
relegadas para a “categoria E”.
Por
outro lado, para os dois cenários seguintes, não encontro qualquer objecção que
me impeça de aceitar uma ocorrência como “válida” quando as aves pertencem a
espécies já inscritas na referida lista nacional e isto apesar da menor relevância ecológica, sobretudo quando é a incúria
humana a determiná-la. Foi assim que inscrevi no meu inventário o PAINHO-DE-CAUDA-FORCADA
(Oceanodroma leucorhoa) que recolhi
exausto do areal na praia de Ofir em dezembro de 2000, mesmo sabendo que sem os
dias consecutivos de fortes tempestades que então se verificaram a ave não se
teria aproximado tanto da costa. Deste modo, também registei os
PAPAGAIOS-DO-MAR (Fratercula arctica)
que apareceram moribundos na restinga do Cávado depois do petroleiro Prestige
ter naufragado na vizinha Galiza em novembro de 2002 – no mínimo andavam por
aí, ao largo.
Já
no que se refere a aves encontradas mortas não consigo definir estes critérios
de forma absolutamente pacífica. E têm sido vários e distintos os casos com que
me tenho deparado. Nos meus primeiros anos de observação de aves neste estuário
encontrei na margem esquerda do Cávado o esqueleto do que deveria ter sido um
GANSO-PATOLA (Morus bassanus) e que
trazia num dos tarsos a anilha do BTO British Museum Natural History (London)
com o nº. 5255024. Como naquela altura, e devido à inexperiência, esta espécie
ainda não constava na minha lista, confrontei-me pela primeira vez com estas
questões. Não pecaria por ligeireza se aceitasse a ocorrência dessa espécie
quando o que localizei foram os restos de uma ave e nem sequer sabia onde tinha
sucedido a sua morte? A anilha apontava para a sua origem bem distante.
Poderia, então, excluir a hipótese da carcaça ter sido transportada desde essas
paragens por uma corrente marítima caprichosa? Sem encontrar respostas,
preferi, por cautela, adiar a “descoberta” alguns meses até perceber que, afinal,
o ganso-patola é abundante na nossa costa. Ainda na década de 1990, enquanto
não me familiarizei com as vocalizações do NOITIBÓ-CINZENTO (Caprimulgus europaeus), que, hoje sei,
sempre foram vulgares entre nós durante os meses estivais, omiti esta ave da
minha lista, mas à medida que me fui deparando com indivíduos desta espécie
atropelados nas estradas que atravessam o pinhal a sul do Cávado, considerei
ser lógico inclui-la. Face a estas duas situações que vejo como divergentes,
apesar de ambas envolverem espécimes sem vida, percebi intuitivamente que o que
procuro é testemunhar através da
observação de campo a presença das aves nesta região, bastando, para tal,
estar seguro de que aqui chegaram ou passaram vivas, mesmo que as encontre já
mortas.
Mas
ao final da tarde do dia 13 de julho de 2009, encontrei cerca de dez aves da Família
Procellariidae, posteriormente
identificadas como o FURA-BUCHOS-DAS-BALEARES também conhecidos por PARDELAS-DO-MEDITERRÂNEO
(Puffinus mauretanicus), todas mortas muito recentemente sem sinais
de trauma e distribuídas por poucas centenas de metros entre as praias
da Senhora da Bonança e das Pedrinhas, em Fão.
De
certa forma, podia situar este caso entre os dois anteriores. Se, por um lado,
o estado ainda fresco e íntegro das carcaças e o seu elevado número apontava
para que a morte destas aves tivesse ocorrido nas imediações, por outro, não
podia afastar totalmente hipóteses como, por exemplo, a captura por pescadores
numa região afastada e posterior rejeição para as águas quando passavam em
frente a estas praias. Assim, mantive este registo num limbo, embora fosse
muitas vezes assaltado pelas informações de diversos autores/observadores que
se referiam à presença desta espécie por todo o litoral nacional, incluindo o
de Esposende. Destaco, pela oportunidade, uma passagem do livro AVES DE
PORTUGAL – Ornitologia do Território Continental, de Catry P, Costa H, Elias G
& Matias R, referindo-se à abundância e distribuição destas aves na região:
«Segundo Reis Júnior (1931a), no início
do século XX os fura-buchos (sem dúvida desta e de outras espécies) eram muito
perseguidos pelos pescadores poveiros, que os matavam às centenas no mar … para
deles se alimentarem». Confiei, pois, que a breve prazo haveria de registar
a passagem destas aves na minha área em estudo, mas têm resultado infrutíferos
os esforços que tenho dedicado nesse sentido, até porque, para lá das
dificuldades de deteção a partir da praia, a sua identificação não é uma tarefa
simples.
Nos
últimos meses, porém, sucederam-se alguns factos que me fizeram regressar a
esta reflexão. Inicialmente, foi o interesse que me demonstrou Gonçalo Elias,
coordenador do portal Aves de Portugal, sobre a proveniência de uma TORDA-ANÃ (Alle alle) que em dezembro de 2002, após
ter sido recolhida já morta na praia de Aver-O-Mar, Póvoa de Varzim, deu
entrada no Centro de Acolhimento e Recuperação de Espécies de Esposende (então
criado para receber as vítimas do desastre ecológico causado pelo Prestige).
Depois, foi o aviso que me chegou de alguns observadores de aves experimentados
para a importância de submeter ao CPR, para homologação, o registo de uma MOBELHA-GRANDE
(Gavia immer) que encontrei também
morta em fevereiro deste ano na restinga do Cávado. Por fim, foram as observações
de dois bandos de aves do género Puffinus que fiz em abril último em
frente à foz do Cávado, o primeiro na manhã do dia 4 constituído por cerca de
10 aves que seguiam para sul a uma distância inferior à dos recifes e o segundo
na manhã seguinte com o dobro dos indivíduos e que rumavam no sentido oposto
ainda mais próximos da praia. Não foi possível, em tais circunstâncias, excluir
a possibilidade daquelas serem aves da espécie FURA-BUCHO-DO-ATLÂNTICO (Puffinus
puffinus), mas se pudéssemos seguir a ordem das probabilidades, ficaria
muito tentado em aceitar que tinha observado os congéneres P. mauretanicus, espécie que, segundo o mesmo livro de
referência da ornitologia nacional já aqui citado, «… é dos procelariformes
mais fáceis de observar ao longo da maior parte da costa portuguesa, já que
frequentemente se mantém muito próximo do litoral… parecendo evitar o alto mar…»
em oposição ao que ainda ali está escrito acerca do P. puffinus «…
migrador de passagem pouco comum… é uma ave de hábitos pelágicos, relativamente
difícil de ver a partir da costa…».
Conforme entretanto pude
apurar, as reservas que sempre mantive quanto ao real significado dos registos
de aves encontradas mortas na linha da maré também já estavam previstas pelo
CPR (ou pela AERC) quando dividiram em quatro subcategorias as espécies da
categoria D (que não estão incluídas na Lista
das Aves de Portugal), uma delas, a D3, atribuída a “espécies
que se incluiriam ou na categoria A ou na categoria B, mas que foram apenas
encontradas mortas na linha de maré”.
Deveria,
então, aguardar por mais evidências? Embora continue a considerar que cada um
dos registos por mim obtidos até agora, per
se, não atestam inequivocamente a presença destas aves na região, admito
que, associando:
-
a observação das aves mortas na praia nas circunstâncias em que verifiquei em julho
de 2009;
-
a passagem de bandos que estou seguro pertencerem ao género Puffinus em abril de 2013;
-
o testemunho de outros que comprovam a sua observação ao largo de Esposende; e
-
o que está explanado em diversa literatura que a reconhece como comum em todo o
litoral ibérico;
seja
razoável inscrever o Fura-buchos-das-baleares (Puffinus mauretanicus) como a 202ª espécie do
meu inventário para a quadrícula UTM NF 19 e que gosto de apelidar de “Estuário
do Cávado e Habitats Adjacentes”.
A imagem anterior, obtida
do portal da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), ilustra
a distribuição global desta espécie que está classificada no livro AVES DE
PORTUGAL como estival e migradora de
passagem comum e invernante pouco comum. Apesar disso, tanto ao nível
nacional (Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal) como global (IUCN)
foi-lhe atribuído o estatuto
de conservação de criticamente em perigo.
Assim, esta ave que nidifica exclusivamente no arquipélago das Baleares, consta
no Anexo I da Diretiva Aves (é objeto de medidas de conservação especial
respeitantes ao seu habitat).
As viagens de barco entre
Peniche e as Berlengas podem proporcionar-nos das condições mais favoráveis no
nosso país para a observação do Puffinus mauretanicus, no entanto, conforme experimentei em junho
de 2010, a
tarefa de os fotografar pode complicar-se bastante em caso de forte ondulação.
Na
Zona Económica Exclusiva (ZEE) do continente nacional, além das duas espécies
do género Puffinus já aqui mencionadas, ainda pode ser encontrada a
migradora de passagem pouco comum a comum PARDELA-DE-BARRETE (Puffinus
gravis), a migradora de passagem pouco comum PARDELA-PRETA (Puffinus
griseus) e o migrador de passagem raro PINTAINHO ou PARDELA-PEQUENA (Puffinus
assimilis). Na LISTA DISTRITAL DE BRAGA do portal Aves de Portugal
contam como já observadas na região a P. gravis e a P. griseus (Noticiário
SPEA nº. 254) e ainda o P. mauretanicus (observação pessoal de A.
Leitão).