Quantos dos episódios já passados na
nossa curta existência estarão irremediavelmente condenados às prateleiras do
esquecimento, onde todos os dias morrem pedaços de nós próprios? E quantas das
nossas memórias aguardam por uma simples centelha do acaso para que ressuscitem?
Foi
com este tipo de questões divagantes que regressei de uma visita que há uns
tempos fiz a um país exótico onde nós, os mais tesos representantes do abastado
ocidente, somos tratados como autênticos marajás. Alguém terá dito um dia que por vezes precisamos de nos afastar para ver melhor. No
acaso que me trouxe até estas palavras, ficará melhor dizer: “foi preciso ir tão longe para recordar as
vagabundices da minha infância neste naco de paraíso a que gostamos de chamar
«torrãozinho»”.
Mas
vamos lá à história que pretendo partilhar.
Se
não me tivesse enojado tanto a discriminação, ainda me teriam subido à cabeça os mimos com que me
privilegiaram naquele país distante. Para ter direito a hotel de luxo em regime
de pensão completa, os primeiros Euros foram pagos ainda por cá, mas sobrariam
outros tantos para os gastos no destino. Da forma indecente como exploramos o
chamado terceiro mundo, não são necessários grandes esforços financeiros para
estas luxúrias – o Algarve fica em dobro mais caro. Então lá fui, levantar voo,
aterrar, alojar e, com o sol tão quente, o mar tão amenamente cristalino e as
areias tão macias, a sombrinha nas espreguiçadeiras da praia mesmo em frente à
varanda do quarto foi ocupada logo nos primeiros instantes. “Isto é que é vida” – dizia a mim mesmo,
enquanto bronzeava os sovacos numa intrigante tranquilidade. Tão intrigante que
desassosseguei. Num breve deslizar de olhos, percebi prontamente que o vasto
areal era apenas frequentado por europeus, pontuando aqui e ali um ou outro
funcionário das luxuosas unidades hoteleiras que se estendiam ininterruptamente
por quilómetros de costa. “E os nativos?”
– perguntei-me. Olhei melhor e… “ah, lá
estavam eles!”. De trouxas às costas, ainda lhes era concedido palmilharem
a praia, mas unicamente numa estreita faixa inferior a meia dúzia de metros
junto à linha desenhada pelo vaivém da água do mar. “A praia é propriedade do hotel
para exclusivo usufruto dos seus estimados clientes” – disse-me um dos
membros do staff com grande pompa e
com toda a naturalidade do mundo. Aí, e num ápice, retorceram-se-me as
entranhas: - “Que país tão miserável
aquele onde, inconcebivelmente, o dinheiro até as praias podia comprar! Ainda
bem que no meu país qualquer praia é considerada um bem comum inalienável!”
– pensei com orgulho pátrio.
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Foi
então que me ressuscitaram recordações da tal meninice aventureira. Lembrei-me das
férias grandes, intermináveis, quentes (que quentes!!!). E de uma incontrolável
ousadia. Da vontade constante de pisarmos o risco. De desafiarmos os zelosos
vigilantes de todos os espaços que nos eram vedados. Das dunas cercadas a sul
do Hotel de Ofir. Das dunas ajardinadas e limitadas com altos muros a norte e
ao redor das Torres de Ofir. E das que as protegiam. Sim, as dunas já as protegeram
da ira do mar. Todas privadas (sim,
dunas privadas, na Europa). Todas com os seus donos. Os endinheirados donos do
mundo!
OU DE NADA?
O
que diriam nos dias de hoje os velhos e ciosos guardiões das dunas interditas
enquanto perseguissem a canalhada? Agora que as dunas simplesmente
desapareceram? Agora que o mar as levou, como o vento leva uma pena. Agora que
pouco mais restou do que um frágil e magro areal? “A praia é propriedade dos donos
do hotel, dos donos das torres e dos donos das vivendas de veraneio para
exclusivo usufruto dos seus estimados clientes ou abastados proprietários”?
E
como «atrás dos tempos vêm tempos e
outros tempos hão-de vir» – já dizia o Fausto na canção – o que dirão os
imprevidentes senhores dos condomínios
fechados plantados na segunda linha de dunas quando, fatalmente, o mar lhes
invadir os “pequenos impérios”? “A praia é
propriedade do condomínio para exclusivo usufruto dos seus residentes”?